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Sines de Francisco Luís Lopes

Francisco Luís Lopes

A primeira monografia de Sines foi publicada em 1850, por Francisco Luís Lopes, um médico algarvio estabelecido no concelho entre 1847 e 1869.

Não só como trabalho historiográfico, mas também como crónica de costumes, é um dos mais interessantes livros escritos sobre Sines.

Nada fica por cobrir na sua descrição, da geografia às virtudes das mulheres locais. Ninguém escapa à sua crítica, do comportamento dos homens do mar ao tratamento dado aos animais. É científico, erudito, mas também subjetivo e divertido. É pomposo, afetado, mas também genuinamente preocupado e cheio de compaixão.

“Breve Notícia de Sines”, de que existe uma reedição da Câmara Municipal, de 1985, é, finalmente, um belíssimo - e muito politicamente incorreto - livro de viagem ao século XIX desta terra.

O autor

Francisco Luís Lopes, nascido em Faro em 1816, chega a Sines em 1847. Atrás de si tem 31 anos de vida onde se cruzam a carreira militar, a carreira de médico-cirurgião e um gosto pelas letras de que, pela profusão de citações e pelo próprio estilo, “Breve Notícia de Sines” é testemunho. Cinco anos antes de chegar a Sines, tinha publicado um romance, “Uma Duquesa de Florença”, mal recebido pela crítica. Não são conhecidas novas tentativas neste domínio.

A glória não lhe chega pela via literária, mas também não lhe chega pela via militar. A sua vinda para Sines, em agosto de 1847, dá-se apenas dois meses depois da derrota das forças da guerrilha Patuleia, em que estava integrado.

E é na sequência deste acontecimento que vem para Sines assumir o lugar de “facultativo municipal” (médico-cirurgião). Menos de três anos vão ser-lhe suficientes para escrever a “Breve Notícia”, cujo “primeiro e único fim”, diz no prefácio, é mostrar que Vasco da Gama é natural de Sines.

Mais de 100 anos depois da sua publicação, esse “primeiro e único fim” tornou-se talvez o menor interesse do livro, que hoje vale por aquilo em que é único: um retrato económico, social, político e antropológico (uma antropologia empírica, mas irresistível) de Sines e das suas gentes num período complicado da história local (o concelho é extinto em 1855).

Sines em meados do séc. XIX

Sines em meados do século XIX não seria muito diferente das pequenas terras piscatórias do resto do país. A população era de cerca de 2600 pessoas (pouco mais de 200 sabiam ler e escrever), ocupadas na faina marítima e, no interior do concelho, na agricultura. Como centro balnear, Sines é utilizada de forma muito limitada: “Uma centena de alentejanos e alentejanas vêm aqui anualmente apagar no mar os ardores do sertão. A maior parte por doença - poucos por dandismo”. Porto Covo é o “rendez-vous dos turistas subalternos”.

Embora se vivesse melhor na vila do que no campo, as dificuldades eram grandes para todos, sobretudo no Inverno: “...de Inverno há dias em que não há que comer. A gente necessitada vai às lapas pelos rochedos”. As condições sanitárias no campo e na vila eram más. O cronista menciona a falta de latrinas, ressalvando que, mesmo assim, o asseio das ruas era “muito superior ao da cidade alta em Lisboa”. Ainda que por vezes prejudicada por ventos insalubres provenientes da “má vizinhança” das Lagoas de Santo André e Melides, era uma terra relativamente saudável, muito por ajuda do clima “benigno e temperado”.

Crítica à gestão municipal (e aos munícipes)

Francisco Luís Lopes, que era um municipalista, não se coíbe de criticar a gestão municipal do seu tempo. Certo tipo de observações atravessa os séculos. Veja-se, por exemplo, como ele fala do arranjo das ruas: “Os sítios mais recentemente concertados são os que mais facilmente se desmancham. Seja qual for o desmancho que haja, o concerto é sempre anual. Logo o remédio está em fazer com que estes sítios sejam bem e cuidadosamente concertados, e que o sejam logo”.

Mas também não deixa passar em claro o oportunismo de alguns munícipes: “Os particulares roubam todos os anos terreno público. (...) Cada um giza o seu quintal como quer, e daí chama seu ao terreno circunscrito, que vai aumentando à formiga, nos reparos que se fazem nos valados de areia”.

Os presos e os animais

Francisco Luís Lopes critica as condições da cadeia - “De noite eu tenho ouvido uma voz caritativa, que pede pelo amor de Deus um pedaço de pão para os presos - Para quê? Era melhor matá-los” - e o modo como são tratados os animais: “Será preciso que a Turquia venha a Sines dar lições de caridade? / Sabei, almas de verdugo, que entre esses bárbaros há hospitais e asilos para os animais enfermos, que a velhice impossibilita de irem procurar o seu sustento.”

Tom ácido

Pelo menos na primeira parte do livro, o tom dominante é ácido. E aí nem as classes trabalhadoras são poupadas, especialmente os homens (as mulheres, que “não são feias nem bonitas”, mas “afáveis, sinceras e asseadas”, são também mais laboriosas).

“Sines tem muita falta de braços. O antigo adágio - «barriga cheia, pé dormente» - pode aqui aplicar-se a quase toda a população masculina. / Quem jantou não se afadiga pela ceia. Não é o trabalho que falta, é a vontade de trabalhar. (...) A úlcera da época, o pauperismo, a miséria, a revolução da Europa, isso é um enigma grego para o operário de Sines, que trabalha quando quer, e até por muito favor.”

Pescadores

Especialmente atento à atividade piscatória, é um precursor do associativismo: “Os marujos de Sines devem fazer um compromisso fundado em bases largas (...) que dê independência, dignidade, força e moralidade à corporação, socorro póstumo à família, uma realização de fraternidade (...) O marujo isolado, doente, morre à míngua de tudo. O marujo comprometido é um capitalista...”

Religião

Num livro escrito para dar a conhecer a naturalidade de Vasco da Gama, critica o pouco fervor como é vivida pela população as Festas de Nossa Senhora das Salas, especialmente pelo que ela devia ter de homenagem implícita ao navegador: “E a Sines que importa ter por conterrâneo um dos maiores dos fastos marítimos, cantado pelo maior vate das Hespanhas? - Ela ouviu dizer que a Ermida da Senhora das Salas foi edificada por ele, que quando por aqui passava em suas derrotas a saudava com uma salva festiva - repete isto apaticamente, faz a festa à senhora das Salas com uma indiferença!!!!!!...”

Siniense: entre o alentejano e o algarvio

Um dos tesouros da “Breve Notícia de Sines” está entre as suas páginas 90 e 100: uma caracterização da “moral” da população. Francisco Luís Lopes, que tem um tom tão severo ao longo de quase todo o livro, deixa-se aqui tocar pelo pacifismo e pela tolerância da população de Sines.

O cronista considera o caráter do sineense um ponto de encontro entre o caráter do alentejano e do algarvio: “Em geral, os algarvios são mais francos, mais generosos, mas mais maliciosos. O Alentejo é mais económico, mais agarrado, mas mais cândido. Sines está rigorosamente na transição entre uns e outros”.

Siniense: cético, sincero, tolerante

Como a generalidade dos povos marítimos, o sineense é um cético: “Aqui não há fanatismo. (...) Sines é religioso e amigo de festas e vigílias, mas mais por folgança do que por devoção”.

O sineense é também, na sua generalidade, honesto. “O seu caráter moral é excelente. A todas as horas da noite saem daqui corticeiros e outros almocreves com dinheiro e às vezes grossas quantias e nunca um habitante deste concelho lhes saiu à estrada. Não me consta que tenha havido a mínima tentativa de roubo noturno”, escreve.

Mas será a abertura e a tolerância (inclusive política) de Sines que mais o impressiona.

“O estrangeiro é sempre o bem-vindo. Há pouco ciúme natal. Se o recém-chegado é pacífico e benevolente, pertence à família. Fica adotado.”

Pouco anos depois das convulsões políticas em que o país estivera envolvido, vivia em Sines “gente de ideias opostas às que então dominavam” e, diz, “nunca se desacatou ninguém.”

A este propósito, na página 91, estão talvez as quatro frases mais comoventes do livro:

“O deportado e o homisiado viveu aqui pacífico e benquisto. A índole de Sines é benevolente. Denunciar é malfazer - um acusador é um esbirro. Homens rudemente sinceros nunca podem ser espiões”.

Fontes de informação

A ortografia das citações foi atualizada para o português moderno. Além do próprio livro de Francisco Luís Lopes, este texto teve em conta, nomeadamente para a biografia do autor, o prefácio de João Madeira à edição de 1985 da “Breve Notícia de Sines”.

Livros online

Lopes, Francisco Luís - Breve Notícia de Sines, Pátria de Vasco da Gama. 1ª edição. Lisboa: Typographia do Panorama, 1850. Digitalização realizada a partir do exemplar da obra existente no Arquivo Municipal de Sines, que pertenceu a a José Miguel da Costa (1922-2005).

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